top of page

O Narciso que se fez Música: Uma Reflexão Psicanalítica sobre a música Dirait-on

A psicanálise freudiana nos ensina que o narcisismo é um estágio fundamental da constituição psíquica. Em seu texto "Introdução ao Narcisismo" (1914), Freud postula que, antes de amar o outro, o sujeito passa pelo amor a si mesmo, um investimento libidinal primordial que estrutura o ego. No entanto, se esse amor próprio se torna absoluto e imutável, pode resultar em sofrimentos. Freud observa: "Um forte egoísmo protege contra o adoecimento, mas afinal é preciso começar a amar, para não adoecer". Essa afirmação sugere que há uma correspondência entre o amor próprio e o amor ao outro, uma tensão que precisa ser equilibrada para que o sujeito construa um equilíbrio saudável.

A música Dirait-on, de Morten Lauridsen (1998), baseada no poema Les Roses de Rainer Maria Rilke (1926), nos conduz precisamente por essa jornada psíquica do narcisismo à sua sublimação.

DIRAIT-ON

Abandon entouré d'abandon,

tendresse touchant aux tendresses...

C'est ton intérieur qui sans cesse

se caresse, dirait-on;

se caresse en soi-même,

par son propre reflet éclairé.

Ainsi tu inventes le thème

du Narcisse exhaucé.

Assim dizem (livre tradução)

Abandono rodeado de abandono,

ternura tocando ternura...

É o teu interior quem, sem parar,

Se acaricia, assim dizem;

 

Acaricia a si mesmo,

Iluminado pelo seu próprio reflexo.

Assim, tu inventas o tema

do Narciso realizado.

 O poema evoca a imagem de um abandono que se enlaça em si mesmo, de uma ternura que se toca incessantemente. Há aqui a metáfora de um eu que se acaricia e se reflete, encontrando satisfação em si mesmo: "É o teu interior quem, sem parar, se acaricia, assim dizem." Este movimento ressoa com a concepção freudiana do narcisismo primário, onde o investimento libidinal está voltado para o próprio ego.

No entanto, o desfecho do poema sugere algo além do mero enclausuramento narcísico: "Assim, tu inventas o tema do Narciso realizado." Essa realização não se dá por meio da estagnação, mas da transformação. Diferente do mito clássico, onde Narciso sucumbe à sua própria imagem, o poema e a música nos convidam a uma vivência estética que permite a expansão desse amor próprio para além de si, em um movimento de sublimação. Mais do que isso, a imagem criada na última frase do poema aponta para um paradoxo essencial: a possibilidade de realizar aquilo que, no plano da realidade, seria impossível. O desejo equivocado de Narciso, causado por seu encantamento, de bastar-se a si mesmo, de completar-se na contemplação do próprio reflexo sem se perder, é uma aspiração fadada ao fracasso na vida, mas encontra na arte um espaço privilegiado para se cumprir.

A musicalidade de Lauridsen, com sua harmonia envolvente e sua estrutura circular, reforça essa sensação de continuidade e de espelhamento, mas sem aprisionamento. A música aqui não apenas representa a ideia de um "Narciso realizado", mas efetivamente a concretiza, criando um ambiente sonoro em que a autorreferência não conduz à ruína, mas à plenitude estética. Somente a arte tem esse poder de dar forma ao impossível, de transformar um desejo condenado em uma experiência sensorial e psíquica que nos preserva, nos conserva bem, permitindo-nos tocar, por meio da beleza, aquilo que na existência cotidiana permaneceria irrealizável. Assim, a arte realiza aquilo que Freud postulou como um destino possível para o narcisismo: a sua transfiguração em experiência estética e em criação, logo, em sublimação.

Nesse espaço sonoro onde o tempo parece suspenso, o eu se desdobra em reflexos infinitos, não para se perder, mas para se reinventar. O que antes era um olhar fixo sobre si mesmo transforma-se em um fluxo contínuo, onde o desejo de permanência encontra ressonância na efemeridade do som. Aqui, Narciso não se afoga, mas flutua, embalado pela harmonia, sustentado pela música, elevado pela arte. No canto que se repete e se refaz, a própria existência se torna melodia, e, por um instante, aquilo que era impossível torna-se real.

A Música como Arquitetura da Psique: Freud e Milton Nascimento

"Há um menino, há um moleque
Morando sempre no meu coração
Toda vez que o adulto balança
Ele vem pra me dar a mão

Há um passado no meu presente
Um Sol bem quente lá no meu quintal
Toda vez que a bruxa me assombra
O menino me dá a mão"

Arte e psicanálise sempre se entrelaçam, revelando as mais profundas camadas do inconsciente. Não é à toa que Freud e Lacan afirmaram, cada um a seu modo, que os poetas antecipam as verdades. Para “poetas”, leia-se artistas no geral. Eles podem não saber exatamente o que dizem, mas compreendem antes de todos – palavras deles, grifo nosso.

Dentre as formas artísticas, a música ocupa um lugar especial. Em que pese o fato de Freud ter dito no texto O Moisés de Michelangelo, de 1914, sentir-se “quase incapaz de obter qualquer prazer” com ela, seria difícil negar seu poder psíquico: a audição de um simples acorde pode evocar imediatamente memórias, sensações recônditas e mistérios ainda pouco explorados da mente. Não à toa, conhecemos o dito popular, “lugar comum”, de que “Música é Perfume”. Ou seja, seu poder de acessar nosso inconsciente é inconteste...pode ser ainda pouco explicado, pouco entendido, mas é reconhecível rapidamente na vida real de cada um de nós.

Mas para não ficar só na teoria e tentar exemplificar na prática, proponho que tomemos como exemplo a linda musica composta e cantada por Milton Nascimento Bola de Meia, Bola de Gude, gravada  por ele em 1989 no álbum Miltons. Em seu segundo verso, ouvimos:

"Há um passado no meu presente / Um Sol bem quente lá no meu quintal / Toda vez que a bruxa me assombra / O menino me dá a mão."

Aqui, beleza e verdade se fundem. Mas como compreender essa presença do passado no presente? Como entender que concordamos que há um passado no meu presente, e que nem precisa ir longe, pois o mesmo se esconde aqui no meu quintal? Sem querer inventar a roda, vamos partir para o que funciona há mais de um século: apelemos a Freud!!!

Em O Mal-Estar na Civilização (1930), Freud compara a psique a Roma, a cidade eterna. Embora vejamos apenas a superfície moderna, as camadas antigas continuam ali, invisíveis, mas estruturando tudo. Ele nos descreve que a primeira menção ao que hoje é a cidade de Roma data de oito séculos antes de Cristo com o que ficou conceituada como a Roma Quadrata, da época de Rômulo. Desta primeira fortificação, chegamos à Roma atual com seu estilo Renascentista. Mas a mensagem tão bem delineada pelo autor é que mesmo estando diante desta Roma conhecida, estamos também, de muitas formas, em contato com os séculos que a precederam e que de maneiras muito complexas e misteriosas se fazem presentes na paisagem contemporânea.  Da mesma forma, na mente humana, nada se perde: experiências, traumas e lembranças seguem atuando, moldando quem somos.

Pois pergunto se  não é exatamente isso que Milton canta? A “bruxa” e o “menino” não pertencem apenas ao passado ou ao presente; coexistem juntos, agora e sempre. Medo e refúgio não se anulam, mas operam juntos, sempre acessíveis, sempre ativos—como construções invisíveis dentro de nós. É de tal forma real e inconteste que o músico/poeta se dá ao luxo de afirmar perante todos nós: há um passado em meu presente! E todos nós ouvimos, nos encantamos e nem ousamos contestar. Afinal, quando precedidos por um poeta/músico, também não sabemos bem o quê, mas entendemos quase tudo!

Se quisermos seguir com essa análise não nos furtaremos de entrelaçar outros muitos conceitos fundantes da psicanálise, e extremamente complexos, nestes versos tão simples e belos que Milton nos propõe. Como exemplo, refiro-me ao que funcionaria como o refrão da música e também empresta seus termos para o título:

“Bola de meia, bola de gude
O solidário não quer solidão
Toda vez que a tristeza me alcança
O menino me dá a mão”

Neste momento ímpar de toda a obra, em que a música meio que arrefece diminuindo seus passos e dando uma sensação de que chegamos “ao fim do filme”, ou ainda, que entendemos tudo, ele nos fala a verdade sincera de que o solitário, na verdade, não quer solidão. Afinal, somos todos meninos/meninas que ainda buscam o quentinho do quintal para poderem bem viver. E neste trecho é que se esmiúça melhor o título citando a bola de meia e a bola de gude, imagens tão eficientes em nos transportam para a infância.

Como mais uma tentativa de encontrar contornos teóricos para o quê a arte nos entrega de "mão beijada", cito Winnicott, psicanalista inglês que dedicou parte considerável de sua obra a delinear a importância do ato de brincar que, segundo sua sólida e respeitável argumentação, não era apenas uma atividade recreativa, mas uma forma de expressão e comunicação que permite às crianças explorar e entender o mundo ao seu redor. E há ainda o enorme conceito de Objetos Transicionais, elementos que ajudam a criança a se sentir segura. Em um resumo extremamente simplista e quase irresponsável, podemos pensar que estes objetos transicionais representam, na ausência, a presença reconfortante dos pais. Portanto, ajudam a criança a lidar com a ansiedade da separação. As bolas de meia e as bolinhas de gude não são apenas brinquedos; elas carregam um peso simbólico profundo e nos ajudam a desenvolver nossa independência emocional. Isso lá atrás, quando somos crianças. Mas como Milton tão bem nos lembra com essa música, hoje ainda, quando vez por outra buscamos o quentinho do nosso quintal...real ou imaginário.

Percebam que dos infinitos caminhos que essa obra artística/musical nos propõe enveredei por aqueles que mais sentido fizeram neste momento, para mim. Mas poderiam ser outros, infinitos. Afinal, a música, tal como a psicanálise, nos convida a uma jornada de reflexão. Ambas revelam que somos feitos de muitas camadas, algumas de prazer, outras de dor, e muitas ainda por revelar. A arte, seja ela qual for, escancara o que somos, o que fomos e o que podemos ser. Em cada acorde, em cada verso, Milton Nascimento, assim como Freud, nos lembra: o passado nunca desaparece totalmente. Ele mora em nossos quintais internos, sendo parte do que somos e do que ainda vamos entender. Afinal, não é apenas no silêncio que sentimos. Às vezes, é na música que finalmente podemos ouvir o que está escondido. Basta sentar e ouvir!

A Margem que nunca se habita – reflexões sobre “A Terceira Margem do Rio” de Guimarães Rosa

Muito já se falou a respeito do conto de Guimarães RosaA Terceira Margem do Rio”. Mas a cada vez que alguém pega este livro e revive essa história, contada com a maestria e a verdade que são inerentes a este autor, os elementos que dele aparecem revivem seus gritos, sua angústia, sua dor. O que dizer desta família em que ninguém é vilão nem mocinho, em que todos tentam sobreviver de alguma forma, mas que, não obstante a tudo, acabam encontrando o nada.

Afinal, paira sobre o texto um silêncio que pesa mais do que o próprio som. Mesmo não nos dando outros detalhes, conseguimos através da escrita fina e perfumada de Rosa ouvir este silêncio que se instala nos cantos da casa, entre olhares que não se cruzam, entre palavras que nunca foram ditas. Como nos conta, o pai era homem de poucas falas, mas sua ausência gritou mais alto que qualquer voz. Ele estava ali, sólido como pedra, cumpridor e reto, mas sempre envolto em um vácuo impenetrável. Seu silêncio não era só dele; atravessava os que o cercavam, impregnava os dias, formava um redemoinho no qual todos eram sugados, reféns de um mistério sem nome. De novo... nada disso ele nos disse, mas lendo o texto, sentimos, como se lá estivéssemos.

Então veio a canoa. Pequena, egoísta (ou sobrevivente), forte, moldada para flutuar no tempo, mas não para aportar em nenhuma das margens. Feita não por suas próprias mãos, mas saída de dentro de sua cabeça. Tornou-se um refúgio e, ao mesmo tempo, uma sentença. Aliás, refúgio do quê? De quem? De quem(s)? A travessia não era um movimento de chegada, tampouco de partida. O pai não foi embora e, no entanto, nunca mais esteve presente. Ele ficou entre as margens, onde os pés não tocam o chão e as mãos não podem segurar o que é real. Sua existência se deslocou para um "não lugar", um espaço onde podia ser visto, mas nunca mais alcançado. E o mais poderoso: nunca mais esquecido.

Esse estranho exílio flutuante gerou um tipo de dor que não se pode nomear. Não foi luto, porque não houve morte. Não foi abandono, porque ele ainda estava ali. Foi um corte sem ferida aparente, uma ausência viva. O pai se tornou um signo de algo que não se explica, um enigma sem solução, uma presença que se fez ausência. E a família, presa nesse limbo, sentia-se aprisionada em um tempo que nunca avançava. A terceira margem era um buraco negro que os consumia.

O filho, narrador dessa saga de ausência e angústia, pediu para ir junto. Mas a resposta foi apenas uma bênção, um gesto que carregava em si o peso da recusa e do destino. Peso este, do qual ele nunca mais se livraria. O pai não podia levá-lo porque sua travessia era solitária, sua jornada era um enigma que ninguém mais podia partilhar. E assim, o filho ficou preso ao evento, a esse nó psíquico que atravessou sua vida. Viveu à sombra desse pai imagem, à espera de um chamado que não veio, à espera de uma resposta que nunca chegou.

E quando, finalmente muito tempo depois, o pai lhe deu o sinal para trocarem de papel. Trocarem de sina, ou de pena, o filho não conseguiu. Porque ali ele deve ter descoberto que, para ele, a terceira margem não se habita, apenas se contempla. Porque aquilo que é indizível não se resolve, apenas ecoa. E assim, ele ficou ancorado entre o desejo de seguir e a impossibilidade de partir, refém de um rio que nunca para de correr.

A Serenidade que Esconde a Dor -  Entre a plenitude de Pessoa e a dor que não grita

“Para ser grande, sê inteiro: nada

Teu exagera ou exclui.

Sê todo em cada coisa. Põe quanto és

No mínimo que fazes.

Assim em cada lago a lua toda

Brilha, porque alta vive”

O poema "Para ser grande, sê inteiro", de Ricardo Reis, heterônimo de Fernando Pessoa, é um convite à autenticidade. Ele propõe uma entrega total ao presente, sugerindo que a grandeza não está em feitos grandiosos, mas na completude com que se vive cada instante. Essa ideia ressoa fortemente com conceitos da psicanálise, especialmente nas reflexões de Lacan e Winnicott sobre o self, o desejo e a identidade.

Para Winnicott, um desenvolvimento emocional saudável exige a integração do self verdadeiro, em oposição ao falso self, que se molda às expectativas externas. O poema de Pessoa/Reis parece dialogar anacronicamente com este conceito, pois sugere rejeitar essa cisão da personalidade do indivíduo em prol de ser aceito pelos outros: ser inteiro significa viver sem máscaras, sem medo de se fragmentar entre o que se é e o que se espera ser. Por mais difícil que esta forma de viver nos pareça, frente ao mundo competitivo e restritivo em que vivemos, tal alegação merece a nossa atenção. Afinal, a poesia tem como um de seus propósitos nos mostrar um mundo independente de nossa realidade. A frase “Põe quanto és no mínimo que fazes” pode também ser pensada como uma sugestão de que a autenticidade não está no reconhecimento externo, mas na entrega total ao presente.

Lacan nos lembra que o sujeito é constituído como um vazio estruturado pela linguagem. Como aponta Leyla Perrone-Moisés no incrível trabalho “Fernando Pessoa: aquém do eu, além do outro” (1990), “o eu é [...], para a linguística como para a psicanálise, um significante vazio, cujo preenchimento, precário, depende exclusivamente de uma relação discursiva”. Dessa perspectiva, o poema pode ser lido como uma tentativa de criar um sentido para o eu, um esforço para preencher essa falta estrutural da subjetividade. Pessoa, com seus heterônimos, encena essa multiplicidade do eu, mostrando que a identidade nunca é fixa, mas um jogo de discursos e identificações transitórias.

No entanto, para mim, nada é mais intrigante que o interessante e complexo olhar descrito no artigo “Ricardo Reis e a dor que não grita”, de Carlos Eduardo Fernandes-Netto. O autor analisa a aparente serenidade de Ricardo Reis como uma forma de contenção emocional, onde a busca pela perfeição esconde um profundo conflito interno. Essa leitura sugere que a exaltação da inteireza pode ser, paradoxalmente, uma tentativa de evitar a dor da fragmentação. Ou seja, o desejo de ser inteiro pode surgir como uma resposta à angústia da incompletude inerente ao ser humano, porque não, do vazio de todos nós. Tal dualidade acaba fazendo sentido frente à força, e por que não à tragédia, contida neste lindo título do artigo: a dor que não grita.

Se “a Lua brilha porque alta vive”, como nos lembra Ricardo Reis, talvez possamos interpretar essa metáfora como um reflexo do próprio dilema humano entre inteireza e vazio. A Lua, em sua distância e luminosidade, não se fragmenta perante a escuridão, pois se mantém cônscia de quem é e de que o é sozinha. Por isso, consegue resplandecer inteira em meio ao infinito. Essa imagem pode ser lida como um convite para que cada um encontre sua própria forma de brilhar, sem se diluir nas expectativas do mundo, mas mantendo-se fiel à sua essência. Ser inteiro, portanto, não significa estar isento de dor, mas sim encontrar um modo de existir plenamente, apesar dela.

Assumir a visão do autor deste artigo e entender essa contenção característica da poesia de Ricardo Reis como uma tentativa de evitar a fragmentação nos dá uma dimensão do tamanho deste conflito interno e de quão íntima e verdadeira é essa dor que não grita. Que bom haver a arte, e a poesia, para revelar, sublimar e transcender toda essa batalha!

No fundo, o poema parece propor um caminho terapêutico: aceitar-se por inteiro, abandonar a divisão entre desejo e ideal, entre ser e parecer. Se Lacan vê o sujeito como uma falta, Pessoa responde com a criação poética, oferecendo um refúgio contra essa fragmentação. Mais do que uma busca por grandeza, "Para ser grande, sê inteiro" é um chamado à autenticidade e à reconciliação consigo mesmo.

Encerro essa simples reflexão, reforçando a ideia de que há dores que se calam, que se escondem nas entrelinhas do cotidiano, que habitam o silêncio daqueles que buscam a perfeição como fuga. Ricardo Reis, com sua aparente serenidade, talvez nos diga que ser inteiro não é apenas um ideal a ser alcançado, mas uma batalha contra a própria fragmentação. A dor que não grita, aquela que se disfarça na harmonia e no equilíbrio, pode ser o eco de um self aprisionado, sufocado pelas exigências do mundo. No entanto, a poesia nos lembra que há grandeza na autenticidade e que, ao nos lançarmos por inteiro na vida, encontramos não apenas a inteireza que buscamos, mas a liberdade de sermos, enfim, verdadeiros.

​​​​

Âncora 1

A Magia das Palavras na Psicanálise: De Freud a Lacan

Quando nos dedicamos à obra de Sigmund Freud (1856 - 1939), mais do que encontrar o arcabouço da técnica psicanalítica, nos deparamos com um autor inspirado e genial. Não por acaso, Freud recebeu em vida o prestigioso Prêmio Goethe, concedido apenas a autores que realmente marcaram o pensamento ocidental. Um dos trechos mais poéticos e carregados de significado, na opinião deste pesquisador, encontra-se em seu texto Tratamento Psíquico (ou anímico), de 1905. Logo no início, Freud afirma: "As palavras cotidianas não passam de magia mais atenuada". Outra tradução possível e menos ortodoxa seria: "As palavras cotidianas não passam de magia empalidecida". Essa frase inspirada e provocativa revela um aspecto fundamental da psicanálise: o poder transformador da linguagem na experiência subjetiva. Freud já percebia que as palavras não são meros veículos de comunicação, mas forças que agem sobre o inconsciente, produzindo efeitos significativos na vida de quem as pronuncia ou as escuta. Na prática psicanalítica, a fala não é apenas um relato ou desabafo, mas um instrumento de transformação que pode conduzir à cura.

A profundidade simbólica da obra de Freud e o impacto de seus conceitos podem ser avaliados pelo desenvolvimento que suas ideias encontraram nos autores pós-freudianos. Um dos mais importantes nesse campo é o francês Jacques Lacan (1901-1981). Ao afirmar que "o inconsciente está estruturado como uma linguagem", Lacan leva o conceito de Freud adiante, enfatizando que o inconsciente não é um depósito desordenado de conteúdos reprimidos, mas um sistema organizado por significantes. Ou seja, a linguagem não apenas expressa o inconsciente, mas constitui sua própria estrutura. A experiência psicanalítica, portanto, não se limita à análise de conteúdos, mas ao jogo simbólico que se estabelece na fala do sujeito e na escuta do analista. O mais interessante dessa reverberação da ideia original de Freud em Lacan é percebermos a solidificação conceitual e estrutural da psicanálise. Ou seja, ao delinear seu entendimento de inconsciente, podemos auferir de várias formas que Lacan também enxerga "magia" nas palavras proferidas em uma sessão psicanalítica.

A conexão entre essas duas perspectivas permite aprofundar a compreensão do poder da palavra no tratamento psicanalítico. Se, para Freud, as palavras carregam uma força mágica atenuada, para Lacan, essa magia opera por meio dos significantes que modulam o desejo e a subjetividade. O processo psicanalítico se fundamenta nessa relação: o sujeito fala e, ao fazê-lo, se reconstrói. A escuta atenta do analista não apenas acolhe o discurso do paciente, mas permite que ele perceba os sentidos ocultos em sua própria fala, conduzindo, não sem sustos e resistências, a novas formas de elaboração psíquica.

Não há dúvidas de que a eficácia do tratamento psicanalítico reside na potência da linguagem. A palavra dita em análise não é uma simples descrição da vida, mas um ato que pode modificar a posição do sujeito frente ao seu desejo, seus sofrimentos e sintomas. Assim como Freud identificava a magia inerente às palavras, Lacan desenvolve conceitualmente esse poder ao demonstrar que a linguagem estrutura a própria subjetividade.

O tratamento psicanalítico, portanto, é um espaço onde a magia da palavra revela e transforma. Assim como o mago descobre novos sentidos nos símbolos que manipula, o analisando, ao falar, descobre-se e se reinventa.

​​

Amor, Trabalho e Sonho: Os Pilares da Vida psíquica na Canção 'Amor de Índio'

Como já nos disse o poeta/compositor, “há canções e há momentos que não têm como explicar”. Não tem como explicar, pois tão fundo nos falam, e tão íntimos são os seus sinais, que nos resta apenas apreciar e nos deixar levar por suas inflexões sempre precisas e potentes. Mas como somos seres curiosos e sempre em busca de algo a mais, tentemos entender mais um pouco.

Trago neste simples ensaio um pouco sobre a belíssima canção Amor de Índio, de Beto Guedes e Ronaldo Bastos. Seus lindos versos nos evocam a profundidade da experiência humana, tocando em temas essenciais da Psicanálise, como o amor e o inconsciente. Ao refletirmos sobre esses elementos, encontramos pontes entre a arte e a compreensão da psique.

Proponho que nos concentremos apenas em seu terceiro verso, que pode ser considerado como o refrão, ou ainda, o ponto alto da música:

“Sim, todo amor é sagrado
E o fruto do trabalho
É mais que sagrado, meu amor
A massa que faz o pão
Vale a luz do seu suor
Lembra que o sono é sagrado
E alimenta de horizontes
O tempo acordado, de viver”

A afirmação "todo amor é sagrado", de tão carregada de verdade torna-se quase uma obviedade. Porém, dada a forma afirmativa que os compositores escolheram para tecê-la no texto da música, acaba também por nos provocar. De toda forma, deixa-nos claro que o amor é um pilar essencial da existência humana. Na Psicanálise, especialmente na teoria freudiana, o amor (Eros) é visto como uma força vital que impulsiona a vida e a criatividade.

Desde os primeiros momentos da infância, as relações afetivas moldam nossa estrutura psíquica. O vínculo com os cuidadores, o amor parental e, posteriormente, as relações românticas desempenham um papel fundamental na constituição do sujeito. Freud, ao abordar o conceito de libido, destacou a energia psíquica direcionada ao amor e à conexão com o outro como um dos motores da existência. O amor, ou seja lá como quisermos nomear essa força vital, não só sustenta relações interpessoais, mas também é essencial para a construção da identidade e da subjetividade.

O trabalho, mencionado na canção como algo sagrado, também possui um papel essencial na compreensão psicanalítica da vida psíquica. Para Freud, o trabalho é uma das formas fundamentais de sublimação, um processo no qual impulsos inconscientes, muitas vezes de natureza sexual ou agressiva, são transformados em atividades socialmente produtivas e criativas. Dessa forma, o trabalho não é apenas um meio de sobrevivência, mas também uma expressão da identidade e uma forma de dar sentido à existência. A valorização do "fruto do trabalho" na canção reforça essa dimensão, indicando que o esforço humano, representado pelo suor e pela luz que ilumina o caminho, é parte integrante da construção subjetiva e da dignidade.

Mas em sendo um texto pretensamente querendo falar de música e psicanálise, a menção ao sono não deve passar despercebida. O verso "lembra que o sono é sagrado" ressalta a importância do sono como espaço de restauração e elaboração psíquica. Na Psicanálise, o sono é um momento em que o inconsciente pode se manifestar de forma simbólica através dos sonhos. Freud, em A Interpretação dos Sonhos, propôs que os sonhos funcionam como uma via de expressão de conteúdos recalcados. Eles são compostos por elementos latentes que são transformados (não sem um sofisticado mecanismo de defesa) em conteúdos manifestos, permitindo que o sujeito elabore conflitos internos.

Os versos de Amor de Índio nos convidam a uma reflexão profunda sobre aspectos fundamentais da existência. O amor, o trabalho e o sono, tão bem representados na canção, encontram na Psicanálise uma explicação para sua importância estrutural na vida psíquica. A música, como expressão artística, carrega elementos simbólicos que ressoam com teorias do inconsciente, demonstrando como a arte e a Psicanálise se encontram na compreensão da subjetividade humana.

Assim, seguimos vivendo entre o amor e o trabalho, entre o sono e os sonhos, moldando nossa própria história com a argamassa de nossas emoções e esforços. Como na canção, somos levados por um fluxo de vida onde cada instante é sagrado, cada suor tem seu brilho e cada despertar carrega a esperança de novos horizontes. E só nos resta continuar dançando ao som da existência, compondo nossa própria melodia no compasso do tempo.

​​​​​

© 2025 por Rafael Garbuio, Psicanalista. WhatsApp (32) 9 9854-1933

bottom of page